“Não sou um cara muito inteligente, sou um cara esforçado. Se eu
precisar ler dez vezes, eu vou aprender igual a um gênio.” Ismael foi
aprovado em 5 concursos e trabalha no Supremo.
O advogado Ismael Batista disse que teve um "estalo"
aos 8 anos, que o fez fugir da casa em que vivia, em Samambaia, no
Distrito Federal, para viver no Aeroporto Juscelino Kubitschek. Por
quase um ano, ele dormiu no bagageiro do terminal e conviveu com os
funcionários como se fossem da própria família. Uma dessas pessoas foi a
atendente de uma locadora de carros, cuja mãe o adotou e o ajudou a ser
aprovado em concursos no Supremo Tribunal Federal e no Ministério
Público.
De família pobre, Batista cresceu em um
barraco de Madeirit, montado sobre a terra, com a mãe e os dois irmãos,
em Ceilândia. "[A casa] era um quadradão. Tinha um banheiro de fossa,
um buraquinho para fazer necessidades. O chuveiro era improvisado com
latinha de óleo, com um monte de furos", lembra. "Tinha arroz, feijão,
nunca passei fome. Se não tinha pão, comia arroz de manhã."
O pai foi morto a tiros por usuários de drogas da região. "Ele arrumava
confusão com alguns marginais que ficavam fumando maconha na esquina de
casa. Tinha aquele sangue nordestino quente, não gostava de bandido de
jeito nenhum. E foi jurado de morte." Batista também foi vítima de bala
perdida, dentro da própria casa. Atingido de raspão, ele diz que por
pouco não ficou tetraplégico.
Com a morte do pai, o advogado se tornou responsável
por cuidar dos irmãos mais novos na ausência da mãe. "Aos 5 anos,
cuidava do meu irmão de 2 anos. Minha mãe fazia de noite aquele arroz,
feijão e carne. Deixava no ponto. Na época não tinha micro-ondas, então
ela me ensinou a esquentar no fogão", diz.
A
mãe, que até então era dona de casa, trabalhou durante alguns meses na
comissaria aérea do aeroporto para sustentar a casa até se casar
novamente. "Ela me levou algumas vezes e fiquei fascinado por aquilo."
Desde então, passou a dizer à mãe que se tornaria piloto de avião um
dia.
Fuga
Aos 8 anos, Batista foi deixado em
casa cuidando dos dois irmãos, à época com 3 e 5 anos. A mãe precisava
cuidar da filha recém-nascida que estava internada no hospital. Quando a
tia passou para ver as crianças, ele aproveitou a oportunidade para
fugir.
"Tenho uma coisa muito assim com Deus, de ter uma
noção de que ele está o tempo todo cuidando de mim. E às vezes fazia
coisas que nem sabia o porquê", afirma. "Minha mãe é um doce de pessoa.
Meu padrasto sempre me respeitou muito. Nunca tive nenhuma razão para
fugir de casa. Mas quando minha tia chegou lá em casa, pensei, 'quer
saber?". Ele diz ter saído com destino certo: o aeroporto.
Aos
33 anos, Ismael ainda não sabe explicar a motivação certa para ter
abandonado a família. "Talvez a junção disso tudo, de não gostar do
lugar em que vivia, um lugar muito pobre, em que tudo era ruim para uma
família naquela situação. Pode ser que isso tudo tenha dado um grande
estalo. Mas não foi uma coisa planejada", diz.
Embora não
soubesse ler, ele havia decorado os números das linhas de transporte
coletivo. Com apenas a roupa do corpo e um par de chinelos, tomou o
ônibus 394 para o Plano Piloto.
Nova casa
Deslumbrado
com o aeroporto, Batista disse ter passado horas andando e explorando
todos os cantos do terminal. "Fiquei só andando e olhando. Passei o
resto do dia inteiro andando de um lado para o outro", diz. "Não sei
explicar o que era tão fascinante. É coisa de criança. Era um lugar
bonito, tinha aviões. Hoje em dia, todo mundo anda de avião. Naquela
época, 1991, só andava quem tinha dinheiro, era caríssimo. Tudo era
diferente, e para mim aquilo era legal."
No fim do dia, não teve vontade de ir embora. "Quando
foi chegando a noite, pensei: ‘acho que vou ficar por aqui. Não quero
voltar para casa e preciso arrumar um jeito de dormir." Foi então que
ele encontrou o bagageiro do aeroporto. "’É aqui’, pensei. Entrei, medi,
vi que sobrava espaço. Voltei lá recentemente e fiquei rindo porque é
exatamente igual. Os últimos da direita são maiores. Não precisava de
chave, ficava aberto."
Nas primeiras noites,
dormiu com os braços para dentro da blusa para se aquecer do frio.
Depois, fez amizade com os funcionários do aeroporto e ganhou um
cobertor, um travesseiro e uma toalha. Vez ou outra também ganhava
almoço. Em pouco tempo, começou a improvisar ‘bicos’ para ganhar o
próprio dinheiro empurrando carrinhos dos passageiros.
Durante o período em que viveu no aeroporto, ele chegou a ser levado
duas vezes para um abrigo de menores, mas sempre fugia. Em todo esse
tempo, ele nunca telefonou ou manteve contato com a família. Em várias
ocasiões, a mãe saiu à procura do filho pelas ruas levando apenas uma
foto 3x4.
"Sentia falta da família, mas não via ali os riscos
que uma criança que vive na rodoviária veria", diz. "A condição de
higiene era diferente que na rodoviária. Não tinha 'bicho' drogado. Era
uma situação que imagino que seja muito melhor do que a gente vê as
crianças moradores de rua passando hoje. Não me considerava nada, era
apenas uma criança que estava ali. Hoje digo, fui morador de rua, fui
menino de rua."
Adoção
Após
alguns meses vivendo no aeroporto, Batista conheceu a jovem que se
tornaria a "irmã adotiva" dele. À época, Andréa Carvalho tinha 19 anos e
trabalhava em uma locadora de veículos. "A gente fez amizade. Às vezes
eu chegava lá e comprava café da manhã para nós dois. Quando não tinha
dinheiro, ela comprava café para mim, e almoço também."
Escondida
da mãe, Andréa levava o menino de rua para tomar banho na casa em que
viviam, na 406 Sul. Batista descreve a experiência como “aventura” e
“sonho”.
“Era tudo bonito. A cama era muito cheirosa, tinha roupa
de cama. Fui do lixo para o luxo”, diz. A mãe questionava a filha se
alguém havia estado em casa, mas Andréa sempre negava.Tudo mudou após um
assalto no aeroporto.
"Alguns marginais pegaram as
chaves que ficavam dentro das gavetas dos estandes e levaram os carros
do estacionamento. A polícia começou a fazer uma investigação e ficou
meio perigoso", diz ele. "Foi então que minha irmã falou: 'Está meio
perigoso. Você vai comigo para minha casa, vou apresentar você para
minha mãe. Na segunda-feira, imagino que vá estar mais tranquilo, e você
volta."
Batista passou o fim de semana com a família. No
domingo, foi à igreja. Na segunda, voltou para o aeroporto. “Minha irmã
voltou a trabalhar na segunda e fui junto dela. Não me recordo quantos
dias fiquei lá de novo, até a Andréa me procurar para dizer que a mãe
dela queria conversar comigo.”
Foi então que
surgiu a proposta de ele ir morar com as duas. “Ela [mãe adotiva] me
disse: gostei muito de você. Conversei com a Andréa e queria que você
viesse morar com a gente, ver se dá certo. Não é certeza ainda, a gente
quer tentar. Mas para isso, tem uma condição. Você tem que voltar para a
sua casa, conversar com sua mãe. Se ela concordar, a gente vai lá e
conversa com ela para eu pegar a sua guarda.”
“Fiquei
morrendo de medo porque sei como a ‘baixinha’ [mãe biológica] é”, diz.
“Passei entre seis e oito meses fora de casa. Sabia que quando voltasse o
bicho ia comer e não deu outra.”
Batista ri ao se lembrar
do momento do reencontro. “Quando ela me viu, logo caiu uma lágrima do
olho. Começou a chorar, me abraçou, e na sequência lembro que foi só ‘na
orelha’. ‘Meu filho, você está vivo! Vem cá, cabra safado, o pau vai
comer’. A pancadaria foi feia, o pau foi comendo até em casa.”
Depois,
quando conseguiu conversar sobre a adoção, a mãe foi irredutível. “Ela
disse que não. 'Filho meu tem que ficar comigo'”, diz. Foram vários dias
até que ela mudasse de ideia. “Até que, mais uma vez, por razões que
nem sei explicar, ela acordou um belo dia e falou, ‘cadê?’. Talvez pela
oportunidade que ela viu que se abriu.”
As duas “mães” se conheceram e conversaram sobre a
adoção. “Até hoje elas têm uma boa relação. Minha mãe biológica respeita
muito a adotiva e tem muita gratidão, mas elas não têm contato, uma não
liga para a outra”, diz.
Novos desafios
Em
pouco tempo, Batista estava integrado a uma nova rotina na Asa Sul e
aos poucos foi conhecendo também uma parte negativa da mudança.
“Querendo ou não, na Samambaia, ou no meio das pessoas que eram meus
pares, que tinham uma história de vida parecida com a minha, eu não
tinha o sentimento de preconceito”, diz.
Ele
conta que ouvia comentários maldosos de todos os lados – de professores,
vigias, vizinhos e crianças. “Depois, fui estudar em uma escola em que
eu era o único negro. Tinha perdido um ano e meio de aula e era o mais
velho em uma turma de crianças.”
“Passei
bastante por essa questão do preconceito. Tinham professores que tinham
preconceito, amigos. Ele se revela de várias formas, no simples fato de
uma criança não querer brincar com você por ser negro. Depois, entre um
determinado grupinho, descobri que tinham me dado apelido de ‘piva’
[pivete], que é moleque de rua.”
O ex-menino de rua afirma que nunca se deixou abalar
pelas agressões e que sabia que estava em uma posição privilegiada. Fez
amigos e teve namoradas, mas conta que nunca gostou de estudar.
“Tirava
a média nos primeiros três semestres para estudar apenas no último
bimestre. Não me arrependo dos meus erros, eles me ajudaram na minha
formação humana adulta, e é em razão disso tudo que passei. Mas mudaria
esse aspecto, teria aproveitado melhor.”
Vida acadêmica
Batista
diz que só começou a se dedicar aos estudos aos 19 anos, para passar no
primeiro concurso público. “Estudava 12 horas por dia – de 8h até
meio-dia, tirava duas horas para descansar. Voltava às 14h, via um pouco
de televisão, jornal, jantava. E às 20h estudava até meia-noite. Eram
três turnos.”
Foi então que se apaixonou pela profissão que seguiria. “Comecei a
estudar direito administrativo, constitucional. Não sabia nem o que era
alínea, parágrafo. Estudei oito meses e passei em um primeiro concurso
para bancário no BRB, aos 22 anos”, diz. “Seis meses depois, fui chamado
para técnico no STF.”
Algum tempo depois, Batista foi aprovado para
analista no Conselho Nacional do Ministério Público e para outros três
concursos públicos. Atualmente, ele estuda para a segunda fase do
concurso de delegado de Polícia Civil.
“Você começa a
passar, vai passando, e vai adquirindo aquele acúmulo de conhecimento”,
diz. “Não sou um cara muito inteligente, sou um cara esforçado. Se eu
precisar ler dez vezes, eu vou aprender igual a um gênio.”
O
advogado se define como um “aproveitador de oportunidades”. “A maior
parte dos meus amigos de Samambaia já morreu. Sempre fui muito esperto e
ia acabar usando essa esperteza para alguma coisa que talvez não fosse
boa”, diz.
"É uma antítese entre o malex do aeroporto e
uma mesa de servidor do Supremo, que já me fez chorar muito. É uma
junção de bênção, que se chama de sorte, com também aproveitamento de
oportunidades.”
Fonte: G1
Curta ou siga Sul Concursos clicando abaixo ou cadastre seu e-mail aqui ao lado e mantenha-se informado sobre todos os concursos públicos no RS e dos principais concursos realizados na região sul do Brasil. Fique sabendo de editais, notícias, informações, dicas e tudo mais para conquistar sua vaga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário